Yavanna,

após tantos anos de mensagens rápidas e curtas me parece tão estranho falar contigo através deste papel de simples enfeites rosados. Tão simples se comparado à complexidade eletrônica que já não possui valor algum.

Escrevo-te porque afinal foi o nosso vício pela escrita que formou nossa amizade. Escrevo pela necessidade e porque sinto falta daqueles dias que agora apenas jazem na memória. Oh! Não sinto falta do olhar fixo nas telas, não pense isso. Eu realmente precisava de uma desculpa para viver. Mas não posso deixar de lamentar a ausência de tantos talentosos autores em minha rotina.

E quem poderia prever o futuro, afinal?

Foi tão de repente. Num dia estávamos lá vivendo nossas vidas acreditando que toda a nossa imperfeição e hipocrisia seriam eternas. E no outro dia tudo havia acabado, tudo que talvez jamais devesse ter existido. Estávamos de volta à antiguidade, vivendo num cemitério de automóveis.

Diante de carros parados sem explicação, na ausência de luz e telefones vi minha mente fértil viajar milhas numa velocidade que jamais atingiríamos novamente, mas não acreditava que eu estava certa. Me senti (e ainda sinto) personagem daquelas estórias que amamos ler e escrever. Você ainda escreve, não é?

Talvez o mundo tenha acabado. Sem grandes explosões, naves avançadas ou máquinas hiper-inteligentes. Talvez tudo acabe como começou.

Não há carros nas ruas, não há som de rádio, TV ou computador. Eu gostaria de ter aprendido a tocar algum instrumento para quebrar a monotonia dos dias cortada apenas pelo som de vozes desafinadas. Como tem passado sem seu rock pesado?

Quando compreendi não sabia se ria ou chorava. Pensei em todos os amigos perdidos provavelmente para sempre, mas a curiosidade também era forte. Não é todo dia que se vê uma “catástrofe” a nível global. E então só restava (sobre)viver e esperar que a notícia viesse de algum lugar.

Tenho devorado todos os jornais que antes ignorava diante da facilidade de encontrar apenas o que interessava. Acho que estou reaprendendo a viver, e ouso dizer que estou feliz. Não sei, devo ser boba em ficar feliz diante de tanta confusão, dos suicídios e das mortes nos hospitais parados. O que posso dizer? Há mortes, mas me sinto viva.

Se há alguma tristeza é pelos contos e poemas para sempre perdidos. Você possuía algum impresso, Yavanna?

E as distâncias? Nosso maior preço. De repente o mundo cresceu, e agora me parece que você vive noutro planeta. Ao menos não precisaremos nos preocupar com o preço da passagem.

Aliás, irei me mudar. Estou enviando o endereço, não quero perder contato. Parece loucura mudar-se sem a tecnologia dos carros ou caminhões, mas todos aqui em casa concordam que é tolice viver na cidade quando podemos desfrutar do ar puro do campo. E a perda de profissões é outro problema que felizmente poderá se revolver com a mudança.

Alguns dos jornais dizem que os cientistas que sobreviveram (você leu sobre os atentados a laboratórios?) estão buscando explicações. Não acho que a tecnologia voltará. O que você acha?

Talvez seja apenas o fim de um dia na história, apenas um novo começo. Esse dia acabou e me sinto estranhamente feliz. Como você se sente?

Bem, não tenho muita experiência com cartas, prefiro narrar fatos ou repetir aquelas tentativas de poesias. Mas acho que com o tempo esse gênero tomara lugar em nossas vidas.

Sinto saudades e gostaria de saber como foram seus dias desde que tudo mudou. E espero sinceramente que esteja tudo bem.


Com carinho, Aurora.





Obs. Os nomes não pertencem às personagens, mas eram nomes fakes usados antes que tudo acabasse. Yavanna é o nome de uma personagem de O Silmarillion, e Aurora representa também o novo “dia” que irá começar.



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3 Responses so far.

  1. ~Direto do túnel do tempo - vulgo orkut~

    Eu não consegui quotar uma parte especifica do texto, mas acho que de certa forma me sinto como ela a respeito.
    Chego a ficar nostálgico apenas de pensar em viver num mundo sem tecnologia, mas o texto passa uma sensação tão boa de liberdade.
    Sério, adorei o texto.

  2. *--*
    hahaha a verdade é que esse foi um dos últimos textos que cheguei a postar no orkut.
    Apocalipses, por alguma razão só sei descrevê-los dessa meneira. :3

  3. Eu gosto. Você não desfaz da antiga forma de fazer as coisas, nem reclama, seus personagens simplesmente se adaptam. Acho ótimo.

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