Prólogo


Ela era uma princesa, sequer conhecia o reino sobre o qual reinava, tudo o que conhecia era a paisagem que a janela de seu quarto lhe mostrava. Vivia cercada pelas paredes do castelo, sempre acompanhada de suas damas de companhia, cercada de comentários sobre as festas das quais um dia participaria.

Raramente via a luz do sol e sua pele era tão clara quanto poderia ser, enquanto seus olhos pareciam refletir o céu azul num belo dia ensolarado. Era ainda uma criança, mas todos sabiam que seria uma bela mulher e renderia ao seu pai alguma ótima aliança. Na companhia da mãe aprendia a bordar e a cuidar dos irmãos mais novos. Um dia deveria ser uma boa esposa e rainha, dando muitos filhos ao seu marido.

Era natural daquela maneira, era a tradição e jamais lhe ocorreu questionar. Não havia motivos, poderia ter todos os vestidos e joias que desejasse. Jane jamais poderia imaginar uma vida melhor. Sonhava com o tempo em que poderia comparecer às festas reais e ser o centro das atenções e príncipes de todos os reinos desejariam com ela dançar.

Contudo, aos seus onze anos já estava prometida a um rei desconhecido de uma terra longínqua no litoral. Jane jamais saíra do espaço cercado pelos muros do castelo e se animou com a possibilidade de uma grande viagem. Casar-se-ia aos quinze, um pedido da mãe para que a menina crescesse primeiro.


Capítulo I.

Das guerras e batalhas a jovem Jane só conhecia gloriosas canções sobre seu povo. Aquelas histórias que por vezes algum bardo resolvia cantar em dias festivos. Tinha orgulho de seu pai e dos antepassados que antes dele reinaram.

Tinha já treze anos quando viu a dor da guerra diante de seus olhos e ouviu os gritos desesperados das mulheres do castelo. Correu para o seu quarto e tentou lá se esconder, mas o chão foi tirado de seus pés. O coração batia acelerado sabendo que poderia morrer, enquanto a mente se dava conta de que as guerras não eram apenas glórias, conquistas e mortes honrosas.

Morrer... não queria morrer, tinha tanto a viver. E gritou, precisava sobreviver:

- Eu não quero morrer. Meu pai irá saber, nenhum de vocês conseguirá escapar.

O homem que a havia alcançado riu maldoso.

- E quem é teu pai, garota?

- Meu pai é o rei e tem exércitos de reinos aliados prontos a lhe obedecer – respondeu orgulhosa.

Jane salvou sua vida, salvou sua integridade. Mas não salvou sua infância e sem saber ganhava sua passagem para uma nova realidade. Era uma princesa, preciosa demais para morrer, talvez rendesse um bom resgate.

Carregada nos ombros de um homem desconhecido foi levada ao mundo. No chão do castelo viu rostos de amigos e inimigos, unidos pela morte. E continuou a gritar em desespero. Alguns tentaram conter o inimigo, mas auxiliado pelos seus soldados (ou mercenários, talvez) matou aqueles que entraram em seu caminho.

Era apenas uma menina e via aquilo que ser humano nenhum deveria ver. Dor, morte, destruição. O castelo de conto de fadas se fora e já não havia para onde correr, já não havia como fugir. O sangue respingava em sua face e podia sentir seu cheiro, jurou que aquele pesadelo jamais acabaria.

Foram longos minutos que pareceram levar horas, até que foi jogada desajeitadamente sobre um cavalo branco encardido após ter suas mãos amarradas. Era agora uma prisioneira já cansada de gritar e que por vezes ainda ousava protestar.

- Princesa, se a senhorita não calar a boca serei obrigado a calar-te com algum pano velho. Isso seria uma pena, pois estragaria teu belo rosto!

O bom senso a mandou obedecer, percebeu que gritar já não iria resolver. Precisaria pensar, mas por um tempo só soube lamentar e chorar silenciosamente. E por fim decidiu que deveria ser forte, o castelo se reconstruiria, seu pai viria lhe buscar e seriam todos felizes novamente.


Capítulo II.

Uma nova lua surgiu no céu e a princesa continuava prisioneira, seu pai não veio lhe buscar. E os homens do castelo já haviam cessado a perseguição, permitindo aos fugitivos melhores noites de descanso. Um mensageiro foi enviado ao rei para negociar o resgate, contudo nenhum acordo foi feito.

E a jovem menina-mulher percebeu que talvez não tivesse tamanha importância, era apenas uma filha, não servia a guerra, não renderia bons dotes ao seu pai. Não valia o preço. Sentiu as lágrimas alcançarem os olhos, mas optou por não chorar, seu pai não a amava, não merecia as lágrimas. E a última vez que chorou em sua inocência de menina foi pela morte da mãe, soube que a mesma se jogara de uma torre na mesma noite da invasão.

Deixou de dizer “Meu pai os caçará em qualquer canto do mundo.” e optou por palavras que como dama do castelo jamais pensaria em dizer: “Um dia eu mato todos vocês, bárbaros desgraçados.”

Os homens apenas riam e muitas vezes falavam entre si usando alguma língua estranha.

- Nos trouxe prejuízo, Ivan. Pensou que era uma princesa, quando na verdade trata-se de uma daquelas aves coloridas e barulhentas trazidas do novo mundo.

E a princesa calou-se. Poderia ainda dizer-se princesa? Pensava nos dias do castelo e no rei com quem se casaria, no rei que jamais conheceu. Será que nem mesmo ele tampouco se importaria em perder sua prometida? Então pensava na sua vida de agora, estava tão distante, via aos poucos o reino sumir por detrás das colinas verdes daquela região. Não poderia negar, o mundo era belo e a cada dia crescia sob seus olhos.

- Por que fazem isso? – certo dia questionou enquanto Ivan, o mesmo homem que a sequestrara, lhe cedia um pedaço de carne assada e um pão não tão fresco.

- Isso o que?

- Matam, roubam.

- É o que nos foi ensinado a fazer antes que tivéssemos idade para questionar. É o que os homens saudáveis fazem, vão a guerra nos campos de batalha, compram inimigos e invadem castelos. Matar é natural, é parte do ciclo.

- Jamais se questionou? Jamais pensou num meio pacífico de viver?

O rapaz não respondeu. E só então Jane notava, era um rapaz ainda, mas sua vida lhe fizera homem. Tinha o corpo e as atitudes de um homem, mas seus olhos eram jovens.

- Qual a tua idade?

Ainda que relutante o rapaz falou. Não tinha uma ideia exata, há muito perdera a noção exata do tempo, sem sacerdotes para lhes informar quais dias deveriam ser dedicados a quais deuses. E sua idade corresponderia ao que nos dias de hoje seriam dezenove anos, talvez um ano a menos, talvez um a mais.

Jane já não tinha suas mãos amarradas e poderia dormir de maneira mais confortável. Jamais seria como dormir em uma confortável cama do palácio, dormia no chão, enrolada em algum velho cobertor, em alguma barraca entre os homens do acampamento. E nas noites mais quentes apenas dormia sob as estrelas. Afinal o céu era lindo a noite!

Poderia fugir então, mas não fugiu. Desconhecia o caminho de volta e já não sabia por onde andava. E mais tarde quando saberia voltar já estaria acostumada com aquela estranha vida que mulher nenhuma do castelo ousaria sonhar.

Via coisas que no castelo jamais lhe seria permitido conhecer. Nos primeiros dias dormira mal, não somente pela cama, mas porque era estranho dormir sem suas damas de companhia, na presença de homens. Mas ninguém lhe fez mal, apenas riam de seus protestos e por vezes brigavam a ponto de levantar a voz, mas nunca a mão.

A lua mudava no céu e a menina crescia, aprendeu a usar calças e roupas masculinas. O vestido estava sujo, rasgado e já não servia tão bem. Por vezes costurava as roupas, tentava aperfeiçoa-las para si e para outros, era tudo o que sabia fazer, afinal.

- E você, princesa? Jamais havia saído do castelo, estou enganado?

A garota confirmou o que Ivan lhe questionava, enquanto era a vez dele preparar a refeição.

- Já não havia pensado numa vida livre? Uma vida em que tenha não somente um reino, mas todo o mundo a lhe pertencer?

- Acho que jamais pensei que o mundo fosse tão grande. Apenas ouvi falar do mar distante em algumas canções quase esquecidas, mas já não sei o que há de verdadeiro naquelas histórias.

- Ora, pois então desconhece a beleza assustadora do mar? – o rapaz esboçou um sorriso que se estendia até o brilho do olhar – Os homens desta tribo vieram de além do mar, dizem que um dia voltaremos para lá.

- E você não veio de lá?

- Eu vivia do lado de cá do litoral, digamos que me juntei a eles quando chegaram – enquanto falava sua expressão mudava carregando em si certo tom de tristeza por uma vida perdida.

Jane não sabia como, mas soube que aquela não fora uma escolha de Ivan. Talvez o passado do rapaz tivesse algo em comum com o seu.

- Qual era a sua idade na época? O que fazia antes disso?

- Não era muito mais velho do que você. Eu era apenas um pastor de ovelhas, uma vida que agora deve pertencer a outra era.

- Era um pastor e te fizeram guerreiro. Talvez minha situação seja menos pior do que a tua, afinal.


Capítulo III.

Os dias de paz passavam, e os viajantes descobriram que um grupo de ladrões estivera atacando aldeias pequenas naquela região, homens desertores, vindos de terra nenhuma.

- Aqui nunca se sabe quantos dias restam de sua vida, por isso precisamos aprender a nos defender. É parte de nosso grupo, e como mulher precisa de proteção ainda maior.

Mulher... era a primeira vez que a chamavam daquela maneira. Teria se perdido em devaneios não fosse pela adaga que lhe foi entregue. Jane tinha uma arma em mãos, tinha nas mãos o peso da decisão entre a vida e a morte. Mas seria capaz de fazê-lo?

- Se for necessário, use-a sem medo. Aqueles que nos atacam matam sem piedade, não há porque fazermos o oposto.

Na calada da noite, quando quase todos dormiam, o acampamento foi atacado. Os homens despertaram prontos para a luta, carregavam espadas, lanças e arcos, precisavam se proteger e evitar que fossem levados os cavalos e os tesouros roubados.

Na confusão Jane acordou e não soube o que fazer até o momento em que um bandido sorrateiro a atacou onde se encontrava. Notando que era uma mulher a jogou nos ombros pronto para leva-la à floresta mais densa antes que alguém notasse.

Hesitante e com a adaga em mãos a garota atingiu as costas o inimigo. Este gritou de dor, caindo no chão e a levando consigo. Um novo golpe e conseguiu desvencilhar-se do homem.

Jane tinha uma arma suja de sangue. Jane matara um homem, era uma assassina. Viu ao longe Ivan lutar com outros homens e desejou estranhamente poder ajudar, não se sentir tão inútil quanto era vivendo no castelo. Mas o que poderia fazer com uma simples adaga?

E por que ajudava? Aqueles homens haviam roubado a vida de gente do castelo. Mas algo lhe dizia: agora aquela era também a sua vida. Viajava pelo mundo, sem regras para obedecer, sem horário para dormir e tinha um preço a pagar. E percebeu que poderia ser diferente, desejou poder viver da liberdade, viver como os homens viviam. Por que precisava viver trancada no castelo enquanto o mundo acontecia lá fora?


Capítulo IV.

O grupo do qual ela fazia parte vencera, estavam em maior número. Contudo alguns guerreiros também haviam morrido, enquanto outros estavam feridos. Seguindo os instintos e as dicas de um dos homens mais velhos do grupo ela ajudou a cuidar dos ferimentos. O jovem Ivan havia conseguido um corte leve no rosto e um mais profundo em seu braço. A primeira grande cicatriz de muitas que ainda viriam.

Usando um remédio preparado com plantas da floresta, a garota limpou o ferimento da maneira como lhe era ensinado. No castelo era permitido às mulheres somente orar para que seus maridos, irmãos ou filhos se salvassem enquanto os padres e os médicos faziam seu trabalho.

- Em nosso povo as mulheres são conhecedoras da arte da cura. Talvez um dia possam te ensinar alguma coisa, menina, pois vejo que tua alma cresce a cada dia que enterra tua infância no passado – foi o que lhe disse o homem que ensinava a cuidar dos feridos.

Viu Ivan morder os lábios para não gritar de dor enquanto ela limpava o ferimento. E riu como há muito não ria, como um dia jurara que jamais conseguiria.

- É mesmo necessário fazer isso? - o rapaz perguntou fazendo caretas de dor.

- Ora, você reclama feito um bebê quando enfrentou bravamente a espada que causou esta ferida. Cale a boca, o pior já passou.

Era menina-mulher, mas já não usava as palavras bonitas e educadas que um dia lhe haviam ensinado no castelo. Sua linguagem era a de alguém que crescia em meio a soldados, de alguém que vira a guerra antes de entender o preço da honra e da glória. E notou que Ivan a observava enquanto cuidava da ferida e depois a enfaixava cuidadosamente com um pano.

- O que foi? Por que sorri?

- Você cresceu desde que chegou aqui, princesa.

Sem saber o que responder a garota silenciou e focou-se na ferida. Seria um elogio? Ele a chamara de mulher mais cedo e agora dizia aquilo? O que significaria? Desde que deixara o castelo não vira um espelho sequer e seu único gesto de vaidade era pentear e trançar os cabelos como um dia sua mãe havia lhe ensinado.

Tratou rapidamente a pequena ferida do rosto notando que o rapaz tinha olhos verdes e uma bela aparência afinal. Corando tentou desviar os pensamentos que lhe vieram em mente e tornou a falar:

- Por que ainda me chama de princesa? Esse título não mais me pertence. Meu nome é Jane, apenas Jane, pois já não preciso dos nomes e dos títulos herdados por meu pai.

- Tudo bem, guerreira Jane! – dessa maneira a jovem compreendeu que ele sabia que ela também já havia matado.


Capítulo V.

Os homens decidiram manter-se no mesmo lugar por alguns dias, até que pudessem se recuperar e partir com maior segurança. Jane cuidava dos feridos e logo não precisava mais de instruções para preparar os remédios.

- Ivan, quero aprender a usar o arco e a espada. – disse na tarde seguinte, enquanto os dois estavam sentados na beira do rio assistindo o tempo passar junto com as águas.

- Jane, a guerra é perigosa. Você viu duas vezes o que pode causar e até mesmo me disse que uma vida pacífica seria melhor.

- Vi também que é melhor portar armas e poder se defender ao invés de ficar apenas observando e rezar para não morrer. Assim poderei ser útil de alguma maneira.

- Não diga que é inútil, veja tudo o que está fazendo por nós. Ensinarei o que me pede porque o caminho a frente não será tranquilo, mas terá de esperar para que meu braço se recupere. Apesar de que, sob tão bons cuidados, acredito que não precisará esperar por muito tempo.

Sentindo os velhos hábitos predominarem a garota o abraçou para agradecer, mas desajeitada afastou-se logo. Antes abraçava seu pai ou seu tio quando lhe traziam algum presente de uma viagem distante, mas Ivan não era seu parente e novamente os velhos costumes e a timidez predominaram.

O rapaz, por outro lado, lembrou-se que há muito não recebia um abraço carinhoso. E riu da timidez da garota, ainda que desejasse que ela não houvesse se afastado.

Assim permaneceram em silêncio apenas a observar a passagem das águas até sentiram o cheiro do jantar.

***
Dois dias haviam se passado quando Ivan começou a ensinar a Jane como manusear a espada, ainda que nas primeiras lutas fossem usados dois pedaços de madeira. Ela disse que o braço dele precisava melhorar, mas ele insistiu que morreria de tédio se ficasse o dia todo apenas comendo, dormindo e vendo as águas do rio se agitarem mais do que sua própria vida.

Daquela maneira a tarde passou rapidamente e os jovens estavam famintos quando foi servido o jantar. A comida se limitava geralmente a carne de caça e frutas silvestres e a bebida era água. O pão há alguns dias havia se esgotado, enquanto o vinho era guardado com zelo pelo líder para que fosse usado em ocasiões especiais. O treino com arco e flecha demorou alguns dias para que fosse iniciado, pois exigia uso dos dois braços e poderia piorar a ferida de Ivan. Mas Jane não demorou a perceber que preferia o arco à espada, ainda que a princípio houvesse alguma dificuldade para acertar o alvo. E as primeiras aulas exigiram que Ivan tivesse maior proximidade da garota do que aquela com que ambos estavam acostumados.

Jane tentou sozinha arrumar o arco de maneira que pudesse atirar, o rapaz riu e posicionou-se atrás dela de maneira que tivesse controle sobre a posição de suas mãos, como se a envolvesse num desajeitado abraço. Em seu ouvido falava sobre dicas e estratégias num tom quase sussurrado.

Ela sentia o coração acelerar, mas não era medo e sim algum novo tipo de emoção que ainda não saberia explicar, enquanto em seu estômago parecia que borboletas por ali voavam. E assim precisou de um esforço ainda maior para focar-se em seu alvo, que era uma árvore com seu tronco pintado com a tinta vermelha de uma flor.

Naquela noite, sob o céu estrelado de outono a menina-mulher demorou a adormecer. Ficou a pensar sobre os estranhos sentimentos que nela cresciam. E refletiu novamente sobre o destino que a vida lhe escolhera. Não deveria, mas aprendia a amar os homens daquela tribo como se fossem sua própria família, começava a imaginar se lhe seria permitido viajar para além do mar.


Capítulo VI.

A lua estava cheia no céu quando os homens decidiram que era tempo de partir, e assim levantaram cedo numa manhã gelada. Seguiram cavalgando por pastagens, florestas e estradas. À Jane foi concedido um cavalo cujo dono não sobrevivera na última luta e cavalgar já não lhe era tão doloroso como fora no início de sua jornada.

- Talvez até a primavera possa conhecer o mar, Jane. – Ivan comentou enquanto cavalgava ao seu lado num dos raros momentos em que a cavalgada era lenta.

A garota então lembrou-se de que o rei a quem num passado remoto fora prometida vivia em alguma terra do litoral.

- Como vem das terras do litoral, Ivan, te pergunto se conhece o rei Alaric? – talvez pudesse ao menos saber como era o homem com quem um dia teria se casado e formado uma família.

Ainda que muitos meses houvessem se passado era impossível de repente jogar fora todos os velhos sonhos. Por vezes ainda lamentava em seus pensamentos a vida que não viveria, os filhos que jamais teria a correrem a sua volta enquanto bordava novas roupas de tecidos caros.

- É o rei que reina sobre o reino onde nasci. Por que a pergunta?

Hesitante a garota optou por ouvir mais detalhes primeiro para depois contar a verdade.

- Bem, meu pai mantinha negócios com ele.

- É um rei do qual jamais me orgulhei, cobra impostos absurdos de seu povo e os usa para fazer grandes festas no palácio. Dizem que em suas atitudes egoístas vem destruindo tudo o que seu pai um dia esforçou-se para construir.

- E você já o viu? Às vezes nem tudo o que se fala sobre os reis é verdade.

- Se eu o vi? Apenas a distância, quando desfilava com seus soldados pela cidade. E torcia para que perto de minha casa ele jamais chegasse, pois sempre que chegava em alguma casa humilde estava apenas interessado nas mulheres que ali viviam. As mulheres que o interessassem deveriam seguir em sua carruagem para o palácio e lá passariam uma ou duas noites, ainda que fossem casadas e tivessem filhos. Meu pai dizia aos cochichos que é uma vergonha um homem de sua idade comportar-se dessa maneira.

- De sua idade? Ora, mas ele não deve ser tão velho assim, não faz tanto tempo que tomou posse do trono.

- Teria idade para ser nosso avô, pois seu pai viveu uma vida longa. Alguns dizem até mesmo que o filho, achando que morreria antes, cansou de esperar e envenenou o próprio pai – a garota fez uma cara de assustada e Ivan a olhou como quem tenta ver além do que as palavras podem dizer. – Mas que tipo de negócios teu pai tinha com este tirano?

- Oh... é... não sei ao certo. As mulheres não costumam saber dessas coisas por lá, muito menos as crianças.

O rapaz não fez outras perguntas e logo o caminho tornou-se melhor para que os animais pudessem apressar seu passo. Mas ao cair da noite, quando o acampamento foi instalado na clareira de uma floresta ele retornou ao velho assunto:

- Jane, é comum mesmo entre os homens mais simples que o pai de uma moça escolha quem será seu futuro marido. Algumas vezes isso é feito quando ela ainda é jovem demais para poder se casar. Seu pai já havia lhe prometido a alguém?

- Talvez... – a garota fingiu-se entretida com as constelações de estrelas tão distantes, pois estavam deitados sobre o gramado enquanto muitos já dormiam.

- Talvez? – ele apoiou-se em um dos cotovelos de maneira que pudesse ver o rosto de Jane – Era Alaric, não era? Havia boatos de que ele se casaria novamente após a morte de sua primeira esposa, diziam que uma princesa viria das terras do sul, além das florestas e das colinas verdes. Era você?

A garota optou por desviar o olhar e manter-se em silêncio. Talvez noutros tempos dissesse que Ivan mentia a respeito de Alaric e na verdade ele era um belo rei jovem, então diria com orgulho que ele a salvaria e se casariam. Mas aprendera que a vida não era um conto de fadas, que as pessoas não são completamente boas ou completamente más e que reis tratam suas princesas e rainhas como se fossem apenas negócios e nada mais do que isso (ainda que mais tarde aprendesse sobre as exceções para todas aquelas convenções da vida).

- Bem, acho que isso retira a minha a culpa por ter te colocado nesta jornada – Ivan murmurou tornando a deitar, olhando as estrelas sem realmente vê-las.


Capítulo VII.

Com o passar dos dias a menina crescia, era menos princesa e mais guerreira. Os guerreiros bárbaros seguiam para o norte, passavam por terras ermas e também encontraram povoados queimados, não eram os únicos invasores por ali afinal. E assim o inverno se aproximava, tornando a comida escassa e as refeições menos fartas.

Os dias tornavam-se mais curtos, mas com sol intenso no tempo em que durava, servindo para aquecê-los do frio que aumentava. A noite o céu mostrava-se ainda mais estrelado, mas dormir ao relento poderia não ser uma boa opção.

Foi quando chegaram a um povoado amigo, foi o que disseram a Jane. Ali viviam pessoas cujos pais também haviam vindo de terras além do mar, tinham a mesma origem dos viajantes. Os guerreiros foram bem vindos e bem hospedados, e os que não se conheciam foram devidamente apresentados.

A Jane apontaram uma casa onde viviam mulheres de todas as idades, disseram-lhe que aquelas mulheres eram estudantes da arte da cura. Ali a jovem foi bem vinda, preparam-lhe um banho e roupas quentes, e depois foi convidada a uma boa refeição. Há muito não usava vestidos e sentiu-se estranha em um, mas ficou feliz por ter roupas novas.

Havia um espelho ali, pois disseram-lhe que era não somente um objeto de vaidade, mas poderia ajudar a espantar maus agouros. Era a primeira vez em muito tempo que podia ver seu reflexo e quase não se reconheceu. Havia crescido e sua pele estava bronzeada de uma maneira que certamente seus pais desaprovariam. Sua mãe uma vez havia lhe falado a respeito das amazonas, mulheres que noutros tempos habitavam aquelas mesmas colinas habitadas por seu povo, e imaginou se estaria se parecendo com uma delas.

Nos dias que se seguiram Jane participou da rotina das mulheres que ali viviam, aprendeu as propriedades das plantas que cresciam mesmo no inverno e aquelas que eram criadas numa pequenas estufa ali mantida. Aprendeu que as mesmas plantas que salvariam vidas poderiam ser usadas para tira-las, tudo dependeria da dose escolhida.

Também ouviu as histórias sobre os deuses daquele povo e como eles haviam lutado em batalhas antigas. Em sua infância aprendera sobre a existência de um único deus e lhe diziam que aqueles homens bárbaros eram ruins e não mereciam o céu, no entanto, aquelas pessoas lhe pareciam tão boas.

- Ora, minha querida, não há deus certo e deus errado. Há bondade e maldade, e se seguir o caminho certo os deuses estarão ao teu lado – disse-lhe uma sabia senhora.

Concluiu que as religiões eram como as histórias sobre guerras, não havia uma única verdade. E se houvesse não poderia saber qual era.

O inverno chegava ao seu fim e com ele vinha o tempo de partir.

- Fique conosco, nobre Jane, será uma boa curandeira e se o desejar poderá encontrar um ótimo marido – disse uma sacerdotisa no dia anterior a partida da garota.

- É um pedido tentador, Diana, mas devo seguir em frente.

- Segue tal jornada pelo jovem rapaz que a acompanha. Mas se esta é tua decisão devo alertá-la: teu destino é tortuoso e escolher segui-lo pode trazer a morte e até mesmo a prisão. Mas dou-te a benção da deusa para escapar da melhor maneira aos perigos que virão.

Não foi fácil despedir-se, pois a garota havia se apegado àquele lugar, amava as pessoas dali e sentia que teria vivido muito feliz ali. Mas queria seguir, queria ver o mar de que tanto lhe haviam falado, agora que havia começado precisava continuar a ver o mundo, ainda que lhe custasse a vida. E com certa relutância confirmava a si mesma que a sacerdotisa estava certa, em partes sua escolha se devia a Ivan.

Alguns dos homens do grupo optaram por ali ficar, haviam se encantado pelas mulheres do povoado. Enquanto outros optaram por seguir e conhecer a terra de onde um dia vieram seus pais e avós.


Capítulo VIII.

Poucos dias após deixarem a cidade, o líder ordenou para que Ivan e outros homens fossem a frente indo direto ao litoral para conseguirem barcos. Quando Jane fez menção de acompanhar o rapaz o líder a impediu, dizendo que queria ela em seu grupo, tinha negócios a fazer numa cidade e uma mulher no grupo causaria boa impressão. Dessa maneira os jovens seguiram caminhos separados, afinal em breve encontrar-se-iam novamente.

Ao aproximarem-se da cidade o líder pediu para que Jane usasse o melhor vestido que havia ganhado das mulheres do povoado. A contragosto a garota o fez. Notava que tratava-se de uma grande cidade, talvez até maior do que aquela onde crescera. Porém percebeu que o líder não se dirigia à feira, mas seguia em direção a uma muralha (ainda que não tão alta quanto aquela que guardava a cidade).

Tratava-se de um castelo. Jane ouviu o líder dizer ao guarda que tinha negócios a tratar com o rei e após algum tempo sua entrada foi permitida. Contudo, os soldados ficaram na entrada do castelo, enquanto somente Jane e o líder seguiam em frente. Ela não compreendia e diante de tantos detalhes a observar sequer sabia qual seria o momento certo para perguntar o que o líder pretendia.

O rei encontrava-se em uma enorme sala, sentado sobre um trono alto enquanto um músico tocava uma canção em sua harpa e uma mulher dançava. A música parou e o guarda anunciou-se a presença dos visitantes antes de retirar-se com o músico e a mulher.

- Meu bom rei Alaric, agradeço a vossa atenção. Venho acompanhando desta moça...

Jane finalmente compreendeu onde estava, qual era o negócio e porque era necessária. O negócio era ela. O líder queria vende-la àquele rei gordo e velho. Oh!, sim, ele era feio e tinha no rosto um sorriso que a assustava. Entrou em pânico e pensou se teria chances de fugir. Tinha consigo escondida apenas a adaga que ganhara de Ivan.

- SEU IMUNDO, SE PENSA QUE IREI ME CASAR COM ESSE TIRANO ESTÚPIDO ESTÁ MUITO ENGANADO – desesperada finalmente encontrou a voz e interrompeu a conversa dos dois homens.

- Menina, deve aprender a se comportar diante de um rei...

Mas o rei ria.

- Ora, não se preocupe. Vejo que ela será uma bela distração. E certamente seu pai ficará feliz em ver-te quando formos ao seu casamento no final da primavera.

- O quê? Meu pai irá se casar novamente?

- Bem, sua mãe deve ter lhe ensinado que um rei precisa de uma rainha ao seu lado.

O rei gordo levantou-se do trono para aproximar-se dela, mas Jane afastou-se com a mão próxima a adaga, pronta para revela-la. A morte ou a prisão, dissera-lhe a sacerdotisa. Pois se a prisão fosse casar-se com aquele homem preferia a morte então. - Não toque em mim ou irá se arrepender.


Capítulo IX.

No momento em que o rei se aproximava da menina, a porta do salão foi arrebentada e todos se viraram para olhar o que acontecia. Ivan vinha correndo na companhia de outros homens do grupo.

- Seu bastardo maldito, não acredito em como pôde fazer isso. Ela curou tuas feridas e então resolve vende-la a esse imundo que não merece o título de rei.

Ivan, que ali mostrava ser homem e não apenas um jovem rapaz, pulou no pescoço de seu próprio líder e com uma espada em sua garganta o ameaçava. O homem riu desacreditando na ameaça.

- E não era essa a ideia inicial? Conseguir algum lucro dela, seu pai não quis pagar, há quem queira. Que diferença há, afinal?

Sem permitir outra palavra o guerreiro arrancou a cabeça de seu líder, sujando de sangue o salão real.

- Não permito esses absurdos em meu castelo. Guardas...

- Pois então terei meu primeiro e último ato de rainha, retiro-o do poder de permitir ou não. – Enquanto falava Jane finalmente pegou sua adaga e usou-a para perfurar a garganta do rei.

Jane tinha uma arma e sabia usa-la, sabia matar e sabia quando fazê-lo. Pois em sua jornada já não havia certo e errado. Mas certamente sair daquele castelo não seria tão fácil. Ainda porque os guardas reais haviam presenciado o assassinato de seu rei.

Uma espada lhe foi entregue e a garota defendeu-se dos guardas que tentaram prendê-la, assim como faziam Ivan e outros guerreiros de seu próprio grupo. Certamente a luta aumentaria e inocentes seriam atingidos não fosse pelo soar de uma trombeta que fez as paredes tremerem. Quem a usava era um homem jovem que trajava roupas coloridas de tecidos caros.

- O que está acontecendo neste castelo? Como se já não bastassem as festas, agora há apresentações de lutas como se fossemos romanos?

Enquanto tentavam falar todos ao mesmo tempo, um homem já de idade avançada aproximou-se de Jane. E só então ela percebeu que ele estivera o tempo todo no canto da sala, desde que ali chegara.

- Fuja enquanto é tempo, menina. Fez o que fez em tua defesa, contudo quando te apontarem a culpa teu destino será a forca. Aquela porta ao canto leva para fora da cidade, na floresta que a rodeia. Vá e leve teus amigos enquanto conversarei com o príncipe dando-te tempo.

Sem lhe dar oportunidade de agradecer o homem destrancou a porta e empurrou a garota que logo foi seguida por Ivan. Sem ver o desfecho da discussão no salão ela seguiu o caminho estreito e escuro. Percebeu que passava por entre as paredes do castelo e por vezes podia ouvir o que acontecia noutros cômodos. Assim como no caminho havia outras portas trancadas, tratava-se de uma rota de fuga elaborada há muito tempo para que os moradores do castelo pudessem fugir de uma guerra ou invasão.



Capítulo X.

Algum tempo se passou e Jane começava a pensar que aquele túnel jamais acabaria. Até mesmo questionava se deveria ter confiado naquele homem desconhecido. O caminho era úmido, a água escorria pelas paredes transformando a terra do chão em lama. O cheiro também não era agradável, o tipo de coisa que se houvesse pensado duas vezes, ou se tivesse opção, talvez Jane não tivesse concordado.

Mas após algum tempo de caminhada literalmente a garota pôde ver uma luz no fim do túnel. O caminho tornava-se mais aberto e as paredes eram então de rocha e não tijolos, pois aquela já não era uma construção humana e sim uma caverna. Quando o grupo (pois outros seguiam atrás de Ivan) finalmente alcançou a saída, o sol já estava se pondo e uma luz alaranjada tomava conta da floresta.

- Conseguimos! – a garota comemorou assim que pisou no solo verde da floresta.

Dessa vez sem hesitar ela abraçou Ivan e permitiu que o rapaz a envolvesse com seus braços.

- Escutem! – disse um dos homens fazendo um sinal para que todos silenciassem.

Todos calaram-se e puderam ouvir o som do vento misturado a um som que Jane desconhecia. Mas ela soube que era um bom sinal, pois aqueles que estavam a sua volta sorriam.

- Venha! – Ivan segurou em sua mão, obrigando-a a correr atrás dele por entre as árvores.

Logo estavam diante da mais bela e assustadora paisagem que a garota lembrava-se de ter conhecido. Era enorme e a vista ia mais longe do que já estava acostumada a acompanhar, era o mar. Respirou fundo sentindo a brisa bagunçar seus cabelos, como se apensas olhar não fosse suficiente para admirar aquele lugar paradisíaco.

E lá no horizonte o sol parecia tão próximo tocando o mar. Sabia que havia terras além por causa das histórias, ou então pensaria que havia chegado ao fim do mundo, que ali era o fim de sua jornada.

- Isso é... lindo! – ela finalmente virou-se para Ivan, notando que ainda segurava sua mão.

Pensou se deveria afastar-se, mas ele segurou sua outra mão e aproximou se de modo que ela poderia sentir sua respiração. Sentindo o próprio coração acelerar a garota sorriu permitindo que a distância restante se extinguisse. Os lábios tocaram-se permitindo que os jovens se esquecessem de todos os problemas. Um beijo calmo e repleto de sentimentos que aos poucos foi intensificando-se.

Segurando o rosto de Jane entre suas mãos Ivan olhou nos olhos azuis da menina.

- Você não pode imaginar o desespero que senti quando percebi que poderia te perder, minha princesa guerreira.

- Agora não há mais o que temer. E eu só posso agradecer pelo dia em que me roubou de minha tediosa rotina!

Assim beijaram-se novamente enquanto o sol desaparecia no horizonte e o vento bagunçava seus cabelos. Enfrentariam outros perigos e outras guerras, mas aquela era uma noite de paz, de comemorar a vida e a liberdade. Na manhã seguinte partiriam para as terras além do mar, e os homens que haviam escapado faziam festas não muito longe dali.

Os dois jovens apaixonados ficaram a observar o mar, o céu e as estrelas, sentiam-se felizes demais para dormir. E não puderam deixar de refletir sobre como reagiriam se naquele dia, já perdido no passado, quando o castelo fora invadido, o que diriam se tivessem lhes contado que estariam ali: felizes por terem a presença um do outro. Mal sabiam que chegaria o tempo em que teriam filhos e viveriam próximos do mar, a ensinar suas crianças a lutarem na guerra, tratarem suas feridas e bordarem suas roupas.

Fim





Obs. Explicando o título: a primeira ideia do conto surgiu enquanto eu ouvia uma música que se chama “Janie’s got a gun” do Aerosmith. Sei que ‘gun’ é revolver e não tem nada a ver com adagas e espadas, mas a ideia do conto acabou tendendo para algo medieval. E soaria estranho “Janes’s got a weapon”. Como a alteração em uma letra do nome original para o conto não faz diferença na pronuncia resolvi adaptar essa parte.

Conto dedicado especialmente à Lara, minha amiga secreta da FFHP que teve de esperar para ver a tentativa de um original fofo, não sei se sou boa em escrever fofuras, mas aí foi algo que pelo menos me disseram se aproximar de um conto de fadas. Já a parte de um original foda não tinha como cumprir, espero que compreenda. Como tinha lido sua fic recentemente imaginei que você curte fantasia e optei por escrever algo do gênero, espero que tenha gostado, mas se não gostou, bem, fique a vontade para dizer, só não garanto que farei outro.

E mais uma vez, desculpas sinceras pela demora.

























Yavanna,

após tantos anos de mensagens rápidas e curtas me parece tão estranho falar contigo através deste papel de simples enfeites rosados. Tão simples se comparado à complexidade eletrônica que já não possui valor algum.

Escrevo-te porque afinal foi o nosso vício pela escrita que formou nossa amizade. Escrevo pela necessidade e porque sinto falta daqueles dias que agora apenas jazem na memória. Oh! Não sinto falta do olhar fixo nas telas, não pense isso. Eu realmente precisava de uma desculpa para viver. Mas não posso deixar de lamentar a ausência de tantos talentosos autores em minha rotina.

E quem poderia prever o futuro, afinal?

Foi tão de repente. Num dia estávamos lá vivendo nossas vidas acreditando que toda a nossa imperfeição e hipocrisia seriam eternas. E no outro dia tudo havia acabado, tudo que talvez jamais devesse ter existido. Estávamos de volta à antiguidade, vivendo num cemitério de automóveis.

Diante de carros parados sem explicação, na ausência de luz e telefones vi minha mente fértil viajar milhas numa velocidade que jamais atingiríamos novamente, mas não acreditava que eu estava certa. Me senti (e ainda sinto) personagem daquelas estórias que amamos ler e escrever. Você ainda escreve, não é?

Talvez o mundo tenha acabado. Sem grandes explosões, naves avançadas ou máquinas hiper-inteligentes. Talvez tudo acabe como começou.

Não há carros nas ruas, não há som de rádio, TV ou computador. Eu gostaria de ter aprendido a tocar algum instrumento para quebrar a monotonia dos dias cortada apenas pelo som de vozes desafinadas. Como tem passado sem seu rock pesado?

Quando compreendi não sabia se ria ou chorava. Pensei em todos os amigos perdidos provavelmente para sempre, mas a curiosidade também era forte. Não é todo dia que se vê uma “catástrofe” a nível global. E então só restava (sobre)viver e esperar que a notícia viesse de algum lugar.

Tenho devorado todos os jornais que antes ignorava diante da facilidade de encontrar apenas o que interessava. Acho que estou reaprendendo a viver, e ouso dizer que estou feliz. Não sei, devo ser boba em ficar feliz diante de tanta confusão, dos suicídios e das mortes nos hospitais parados. O que posso dizer? Há mortes, mas me sinto viva.

Se há alguma tristeza é pelos contos e poemas para sempre perdidos. Você possuía algum impresso, Yavanna?

E as distâncias? Nosso maior preço. De repente o mundo cresceu, e agora me parece que você vive noutro planeta. Ao menos não precisaremos nos preocupar com o preço da passagem.

Aliás, irei me mudar. Estou enviando o endereço, não quero perder contato. Parece loucura mudar-se sem a tecnologia dos carros ou caminhões, mas todos aqui em casa concordam que é tolice viver na cidade quando podemos desfrutar do ar puro do campo. E a perda de profissões é outro problema que felizmente poderá se revolver com a mudança.

Alguns dos jornais dizem que os cientistas que sobreviveram (você leu sobre os atentados a laboratórios?) estão buscando explicações. Não acho que a tecnologia voltará. O que você acha?

Talvez seja apenas o fim de um dia na história, apenas um novo começo. Esse dia acabou e me sinto estranhamente feliz. Como você se sente?

Bem, não tenho muita experiência com cartas, prefiro narrar fatos ou repetir aquelas tentativas de poesias. Mas acho que com o tempo esse gênero tomara lugar em nossas vidas.

Sinto saudades e gostaria de saber como foram seus dias desde que tudo mudou. E espero sinceramente que esteja tudo bem.


Com carinho, Aurora.





Obs. Os nomes não pertencem às personagens, mas eram nomes fakes usados antes que tudo acabasse. Yavanna é o nome de uma personagem de O Silmarillion, e Aurora representa também o novo “dia” que irá começar.




Shipper: Severo/Lílian/James

Classificação: +16

Disclaimer: Nenhum dos personagens citados na fanfic me pertence. Todos são propriedade da brilhante J.K. Rowling. O enredo, contudo, é uma realidade alternativa do enredo original. Aqui Lilian Evans se casou com Severo Snape.

Obs. Fic originalmente postada no dia 10 de fevereiro de 2011, para o challenge Realidade Alternativa, sendo a primeira que escrevi com uma censura mais elevada. Poucas palavras foram alteradas desde então.

























Severo estava feliz, sorridente. A vida lhe presenteara com seu mais almejado sonho: ser amado por Lílian Evans. Ele a pediu em casamento, ela havia aceitado. Isso foi durante a guerra bruxa.

Os anos passaram e o bruxo das trevas caiu. O casal apaixonado não viveu feliz para sempre num casamento perfeito. Os filhos, tão sonhados por ela, não vieram. Quando a ruiva visitava suas amigas, Severo jamais a acompanhava, mesmo que se tratasse de uma comemoração especial. Ela desistira de tentar convencê-lo.

Sem filhos. Casa silenciosa. Poucos amigos em comum. Definitivamente não era um casamento perfeito. Apesar de tudo eles se amavam.

De repente ela passou a sair mais vezes, dizia que iria visitar as amigas. Severo via a esposa maquiar-se vaidosa. Lily deixara de ser apenas uma garota estudiosa de Hogwarts para tornar-se uma mulher linda, atraente. E ele temia vê-la sair tão bela. Desacompanhada.

Virou rotina, todas as quintas ela gastava mais de seu tempo em frente ao espelho. Enquanto passava batom ela notava sua beleza, confiante. Depois sorria, um sorriso maroto. Se xingava mentalmente pelo que estava fazendo. Admirava mais uma vez seu reflexo, então saía sem uma certeza do horário em que voltaria.

Do outro lado da cidade ficava seu destino, a mulher encontrara o homem que jurou desprezar. Embriagada ela gemia nos braços do amante.

James Potter fingia não se importar com o papel de amante. Dizia para si mesmo: “prazer sem compromissos”; “Mas talvez encontrar-se com uma mulher casada seja um compromisso perigoso demais” outra voz em sua cabeça lhe dizia.

Da primeira vez que se encontraram foi ao acaso, no aniversário do pequeno Neville. Sendo amantes tinham mais amigos em comum do que ela jamais teria com o marido.

Severo ficava sozinho em seu laboratório particular, envolvido com as poções que fazia sob encomenda para o hospital St. Mungus. O homem não gostava de festas, eram poucos os amigos que ele visitava. Em seus pensamentos ele via a imagem da esposa em frente ao espelho maquiando-se de forma sedutora. Ele via seu sorriso orgulhoso, maroto.

De alguma forma ele sabia que ela não estava na casa de Marlene. Algo na expressão vaidosa de Lily a denunciava, todas as quintas-feiras. Mas algo nele o fazia não sentir raiva, não ir atrás dela. Ele sabia que a mulher estava infeliz com a esterilidade do casal. Ele sabia o que ela buscava.

James Potter havia herdado a fortuna de seus pais. O jovem era dono de uma bela mansão, mas não era lá o cenário da traição. Encontrava-se com a ruiva numa casa mais simples, porém bonita e arrumada.

Nada naquela casa importava: nem a cozinha arrumada ou suas paredes bem pintadas, tampouco os móveis luxuosos da sala, que por não servirem mais à mansão estavam ali. Talvez algo importasse: o enorme sofá confortável e bem cuidado e, sobretudo, a cama espaçosa no quarto.

A cama. O lugar onde acabavam os encontros, quase todos. O lugar em que o perfume de lírios estava impregnado, a marca de Lily. E também havia o cheiro dos cigarros de menta, que passara a ser característica de James.

Primeiro ela fazia questão de beber do melhor vinho que ele pudesse oferecer, como se a bebida pudesse aliviar sua culpa. E toda vez que ambos se satisfaziam de prazer ela jurava que aquele fora o último encontro. Ele sorria malicioso sem nunca acreditar.

Mas o ultimo encontro viria. Tão de repente como da primeira vez que ela permitiu que Potter arrancasse suas roupas. Não uma despedida planejada por eles, nem por Severo, mas por um quarto personagem.

Numa quinta eles se encontraram sem saber o que a sexta lhes preparava. Ele despiu suas roupas, e ela gemeu de prazer naquela cama uma última vez. A cama que ainda guardaria suas lembranças por muito tempo. Como sempre, trocaram poucas palavras, suas bocas estavam demasiado ocupadas em dizer o que sentiam de outra forma.

Por ironia, ao sair, ela não jurou que aquele fora o último encontro. Ela não disse qualquer palavra. Lily apenas sorriu, não um sorriso malicioso, vaidoso ou maroto, apenas um sorriso meigo, um “até mais” mudo.

Lílian ainda amava Severo, sempre amaria seu marido, seu melhor amigo. Mas a mulher descobriu-se apaixonada pelo amante, algo que era mais do que uma mera atração. Um vínculo criado pelos encontros e por todas as vezes que ela se sentira sozinha nos aniversários e festas das amigas grifinórias. E estava disposta a jamais confessar isso.

Na sexta-feira a ruiva foi até o St. Mungus buscar o resultado de um exame que fizera há dois dias. Algo que com a ajuda das poções de Severo ela poderia fazer em casa, mas ela optou por ir até o hospital, logo após sair de seu emprego. O resultado vinha na forma de uma carta, que, no entanto, ela deveria buscar.

Andando por um corredor típico do ambiente – porém, um dos mais desertos, sendo mais próximo aos laboratórios do hospital – ela começou a abrir o envelope, distraída. Antes que pudesse ler qualquer coisa esbarrou em alguém, provavelmente um medi-bruxo.

- Me desculpe... James? O que faz aqui?

Após a surpresa o amante sorriu malicioso ao perceber que não precisaria esperar até a próxima quinta para rever a ruiva. Por que não um encontro diferente? Ergueu a mão direita mostrando uma pequena cicatriz, recente.

- Quebrei o pulso jogando quadribol. E você, ruivinha, o que faz aqui?

Ignorando o ambiente ao seu redor, James Potter começou a se aproximar da mulher a sua frente. Ele não se importava com outros olhos, queria sentir novamente o toque daqueles lábios que tanto lhe atraiam. No fundo ainda restava algo do sentimento que ele nutria pela garota que ela fora em Hogwarts.

- Eu... vim apenas buscar o resultado de um exame de rotina, nada importante. – ao contrário dele ela se importava com o lugar onde estavam – O que está fazendo?

Ele tocou seu rosto com a mão que fora o motivo de sua presença ali enquanto usava a outra para segurar sua cintura, mas sem impedir a mulher de se afastar, caso ela desejasse.

- Não é obvio? – sorria malicioso, estava tão perto que podia sentir a respiração da mulher à sua frente – Vou te beijar!

- Você enlouqueceu? – o tom de voz usado por ela tentava demonstrar que ela não queria beijá-lo, mas não fez qualquer menção de se afastar.

Ignorando seus protestos James Potter a empurrou contra a parede usando os lábios para percorrer de forma provocante toda a extensão entre seu pescoço e seus lábios.

- James... não podemos. – suas palavras mais se aproximavam de gemidos do que protestos naquele momento – Não aqui. Alguém pode...

Suas bocas estavam próximas, os amantes respiravam o mesmo ar. O olhar malicioso dele a seduzia. A mulher sentia seu coração bater acelerado, sabia do risco que corria, sabia que alguém poderia sair magoado dali. Com uma mão ela ainda segurava a carta, com a outra bagunçava ainda mais os cabelos de James Potter.

- Tudo que é proibido, é melhor. – ele afirmou e então seus lábios se tocaram levemente.

Teria sido um beijo acalorado.

- Lílian. – outra voz falou, uma voz que trazia em si seriedade e decepção.

- Severo?

Os amantes foram flagrados em seu quase-beijo. James se afastou sem saber se sorria e aproveitava para esfregar suas verdades na cara do rival ou se ficava quieto para protegê-la. Lílian ainda estava encostada à parede, sem saber o que dizer ou como agir, sequer sabia como organizar seus pensamentos. Ela não se reconhecia mais. O que fizera de sua vida? O que a levara até ali?

Severo estava sério, não deixava transparecer todas as emoções que sentia, e eram tantas. Talvez ele sempre tivesse uma certeza de que aquilo fosse acontecer. No entanto, não estava preparado para ver sua mulher com outro homem, principalmente com James Potter. Teve vontade de matá-lo, e não com um feitiço, mas com suas próprias mãos. E viu que a mulher que fora o anjo em sua vida não era santa, não era perfeita, mas ele ainda a amava.

- Severo... – ela falou novamente, com um tom de súplica agora.

- Conversamos em casa. – e saiu.

Por um momento ela olhou para o amante, ali parado também. O que estaria pensando? Precisava fazer uma escolha:

- Adeus, Potter.

***


- Severo... – a mulher falou após derramar tantas lágrimas em seu caminho, que optou por percorrer a pé.

- Lílian, - ele nunca a chamava de Lílian, apenas de Lily – prefiro que não fale mais sobre isso. Só me responda uma coisa...

- Severo, eu estou grávida!

Foi a informação mais inesperada daquele dia, e naquele momento ele não sabia se era boa ou ruim. Não sabia o que responder, definitivamente precisava pensar.

Só havia uma certeza, algumas coisas mudariam naquela casa.





















Agora paro e pergunto: Por quê?

Por que, quase sem discordar, aprendemos a aceitar? Por que de repente todos resolvem que precisam crescer ao menos um pouco? E então a ciência e a tecnologia são tudo no mundo. O que valem os sentimentos afinal?

De repente o que não era tão legal virou interessante. E o resto da vida é detalhe, é só o resto. O que era comum ficou estranho. E o esquisito é normal. Como é confuso crescer e ainda mais complexo amadurecer.

Não há mais tempo.

Afinal, o que é crescer? É fingir ser simpático? É sorrir querendo chorar? É ser indiferente querendo gritar (de alegria ou tristeza)? É impor limite aos próprios sonhos?

Por que tentamos resolver problemas que não existem? O problema não é a forma ou a fórmula do sistema, é apenas o sistema. O problema é sermos humanos, é pensar que pensamos.

Não questione.

Não há problema na ciência, nos códigos ou nas linguagens. Ou talvez haja, mas não é este o problema em questão.

Estude, cresça, seja independente. Tenha dinheiro. Tenha poder.

Por quê? Os dados não permitem sonhar. Os gráficos indicam a maldade do mundo (de leste a oeste), a crueldade dos números e das opiniões. Contra provas não há como lutar. Contra o conhecimento abandonado não há armas que se possa usar.

Apenas sorria.

Não é permitido crescer e viver.

Jogando num mundo de verdades controversas. Ou apenas sobrevivendo. De imperfeições evidentes e maldades mal mascaradas. Somos obrigados a sorrir sem felicidade. Fingir que tudo que nos gritam é a única verdade, e fingir que não gritam.

Não há tempo. Aceite.

Não encontro o caminho de volta neste labirinto de ilusões paradoxais. Neste labirinto de escolhas pré-decididas.

Por quê?

As respostas podem ser simples, mas ninguém quer saber.